quinta-feira, janeiro 24, 2008

CONFERÊNCIA DO CARDEAL RATZINGER, de 15.MARÇO.1990

Os caminhos da Fé no actual momento de
viragem

Segunda parte da conferência pronunciada pelo Cardeal Joseph Ratzinger, então Perfeito da Congregação para da Doutrina da Fé, a 15 de Março de 1990, na cidade de Parma. O título original da conferência é Le vie della fede nell'attuale momento di svolta (os caminhos da fé no actual momento de viragem).
Esta versão em português foi traduzida do texto italiano publicado na revista Il Sabato, de 31 de Março de 1990, páginas 80-85. A revista reproduziu integralmente, com o título de L'omologazione religiosa (o sincretismo religioso), apenas esta segunda parte da conferência, porque interessava particularmente aos países ocidentais.
A primeira parte, não publicada pela Il Sabato, tratava da crise do marxismo, examinando três factores que conduziram ao colapso do comunismo soviético: a crise económica, o papel da religião e a actuação dos Meios de Comunicação Social.


IIª parte: O sincretismo religioso

As reflexões que fomos desenvolvendo até agora, tomaram como ponto de partida os recentes acontecimentos da Europa oriental, ainda que tenhamos procurado não perder de vista os nossos próprios problemas, os problemas do mundo ocidental e das suas ideologias.

Esta vertente da questão terá de ser aprofundada ainda um pouco mais numa segunda parte, antes de podermos extrair as conclusões que dizem respeito aos itinerários da Fé, hoje. A este propósito, quero abordar três aspectos: a crise da Fé na ciência, a nova ânsia de espiritualidade e de moral e a nova procura de religião.

A crise da fé na ciência

A resistência que a natureza oferece à sua manipulação pelo homem tornou-se nos últimos decénios um novo factor da situação cultural. A questão sobre os limites da ciência e sobre os critérios que ela deve respeitar levanta-se inevitavelmente. O modo como vem sendo avaliado o «caso Galileu» parece-me particularmente significativo do emergir deste posicionamento novo. Este acontecimento, que no século XVII ainda merecia pouca atenção, chegou a ser, no século seguinte, um verdadeiro mito do Iluminismo: Galileu aparece como a vítima do obscurantismo medieval, ainda vigente na Igreja. O bem e o mal enfrentam-se numa clara contraposição: dum lado, a Inquisição como agente da superstição, como adversária da liberdade e do saber. Do outro, a ciência da natureza, representada por Galileu, como protagonista do progresso e da libertação do homem das cadeias da ignorância que o mantinham atado perante a natureza. Surge a estrela da época moderna na noite tenebrosa da Idade Média.

Estranhamente um dos primeiros a opor-se abertamente a este mito e a oferecer uma nova interpretação dos factos foi Ernst Bloch, com o seu marxismo romântico. Para ele, tanto o sistema cosmológico heliocêntrico, como o geocêntrico fundam-se em pressupostos indemonstráveis. Nomeadamente, por conceberem um espaço fixo, noção que, entretanto, teria sido ultrapassada pela teoria da relatividade. Diz ele, textualmente: «portanto, com o abandono da ideia de um espaço vazio e parado, deixa de se definir o movimento em relação a ele, passa a haver apenas movimento relativo dos corpos uns em relação aos outros, e a eventual fixidez de um objecto dependerá dos corpos que se escolherem como pontos de referência: deste modo, para além da complexidade dos cálculos que possa advir daí, não é, de facto, inverosímil aceitar, tal como se fazia no passado, que a Terra esteja parada e que seja o Sol a mover-se».

A vantagem do sistema heliocêntrico sobre o sistema geocêntrico consistiria assim não numa maior correspondência com a realidade objectiva, mas apenas em nos proporcionar uns cálculos mais fáceis. Até aqui, Bloch exprime só uma concepção moderna das ciências naturais. É todavia surpreendente a conclusão que ele tira: «A partir do momento em que relatividade do movimento está fora de dúvida, um sistema de referência humano e cristão antigo não tem nenhum direito de se imiscuir nos cálculos astronómicos e na sua simplificação heliocêntrica, mas tem o seu pleno direito metodológico, em face das implicações de importância humana, de manter esta Terra fixa no centro e de ordenar o mundo à volta daquilo que acontece e aconteceu nela».

Se aqui ainda estão claramente distinguidos dois âmbitos metodológicos, reconhecendo tanto os seus respectivos direitos como os seus limites, soa já muito mais provocadora a síntese do filósofo céptico-agnóstico P. Feyerabend: «No tempo de Galileu a Igreja manteve-se muito mais fiel à razão que o próprio Galileu, e tomou em consideração também as consequências éticas e sociais da doutrina de Galileu. O seu processo contra Galileu era razoável e justo, ao passo que a sua actual revisão só se pode justificar com motivos de oportunidade política».

Do ponto de vista prático, os dois naturalistas e filósofos, C. F. von Weizaecker e G. Altner, dão mais outro passo adiante quando vêem uma «via directíssima» que conduz de Galileu à bomba atómica. Para grande surpresa minha, numa recente entrevista sobre o caso de Galileu, não foi posta uma questão do tipo: «Como é que a Igreja se atreveu a levantar obstáculos ao conhecimento das ciências naturais?», mas exactamente o contrário: «Porque é que não tomou uma posição mais dura contra as desgraças que ficaram à solta quando Galileu abriu a caixa de Pandora?».

Seria ingénuo construir uma apologética improvisada, com base nestas afirmações; a fé não cresce a partir do ressentimento e de se pôr em questão a racionalidade, mas só cresce com um profundo apreço pela razão e com uma mais ampla compreensão intelectual; mas a este ponto voltaremos mais adiante.

Mencionei tudo isto só como um exemplo sintomático, que manifesta como é profunda hoje a problematização que a modernidade, a ciência e a técnica fazem de si mesmas.

A busca de espiritualidade e de moral

Consideremos agora um outro aspecto: a nova ânsia de moral e de «espiritualidade». Tal como não é possível fazer um juízo conclusivamente positivo ou negativo desta forma de pôr em questão a ciência e a modernidade que hoje está a ficar em voga; também não se pode apresentar a nova abertura à dimensão espiritual do mundo e da vida humana como fenómeno unívoco. Há aqui fenómenos seguramente positivos: no auge da modernidade, a dimensão moral era relegada para a subjectividade e o progresso técnico era visto como um valor em si mesmo, não discutível; ora nestes mesmos domínios a questão ética volta a colocar-se, como critério de acção. Apontar normas morais como limite para a pesquisa e para a produção já não é rotulado de obscurantismo, como acontecia antes, uma vez que, primeiro a bomba atómica e depois as formas biologicamente destrutivas de produção técnica, mostraram, de modo bem palpável, a outra face do progresso.

Indubitavelmente, os reflexos práticos desta tomada de consciência ainda se fazem sentir pouco, como se vê pela controvérsia relativa à manipulação genética e sobre a fecundação humana in vitro. Ora, tal como no passado, as pessoas continuam a não se questionar sobre a possibilidade de abusar da vida humana – vida de pessoas, ainda que não tenham nascido – para as «finalidades mais elevadas» da investigação ou para qualquer outro objectivo que se tenha por bom. O abuso contra o homem, tratado como um objecto, e o brincar com o mistério divino da sua natureza ainda hoje se verificam, tal como no passado. Apesar disso, constata-se agora uma resistência nova a tudo isto, precisamente no âmbito das ciências naturais.

A nova religiosidade

A descoberta da dimensão religiosa tem igualmente muitas facetas. Assim como entre as personalidades eminentes da moderna ciência da natureza se nota agora uma clara orientação para o problema ético e uma recusa da auto-suficiência do positivismo, também existe hoje entre a gente nova uma reacção que a leva a colocar-se, com renovada paixão, a pergunta sobre Deus e a estar disposta a deixar que a sua vida toda, até às raízes, seja impregnada por Ele.

A generosidade dos jovens tem crescido; já não se satisfazem com vagos sentimentos e com meias decisões, mas procuram a obediência incondicional à verdade: a par disto verifica-se uma tendência, aliás bastante difundida e mais vaga, que se poderia definir como a ânsia de uma certa espiritualidade e de experiências religiosas.

Seria errado desprezar este fenómeno, da mesma forma que seria inadequado entrever nele o início de uma nova aproximação à fé cristã. De facto, estes desejos resultam de uma desilusão pela insuficiência da sociedade tecnológica; isso esconde em si elementos nostálgicos e sobretudo um profundo cepticismo acerca da vocação do homem para a verdade. Na História humana a verdade parece desacreditada pela intolerância daqueles que se crêem os seus seguros detentores. Além disso, a experiência dos limites da ciência e da fragilidade das ideologias inclinam mais ao cepticismo que à coragem para a procura da verdade. Assim, a verdade acaba por ser facilmente substituída por «valores», em relação aos quais se pode tentar ao menos um consenso geral.

Contudo este modo de escolher os valores é igualmente discutível, na medida em que se considera que o próprio critério de verdade é inacessível. Mas, sobretudo, a religião que nasce do cepticismo e do desencanto pelos limites do conhecimento vem necessariamente marcada pelo domínio do irracional. Não compromete e acaba facilmente por se tornar uma droga. Formam-se novas mitologias, como resulta particularmente evidente no fenómeno multifacetado e candente que se vem difundindo com o nome genérico de «New Age». As analogias com a antiga gnose são notórias.

Tal como então, aqui se aglutinam mitologias esotéricas com a auto-proclamada pretensão de ter nas mãos a chave do saber e de ter encontrado a explicação plena da realidade, na qual os mistérios do todo são revelados e o conhecimento se torna libertação.

O Deus vivo desaparece numas profundidades espirituais, em que o homem mergulha e finalmente se dissolve, para se transformar assim numa só coisa com o todo de que provém. Cobra nova actualidade o aviso de Karl Barth, segundo o qual a religião se pode tornar uma auto-satisfação que, em vez de levar a Deus, encerra o homem em si mesmo e o fecha para Deus.

Os caminhos da Fé, hoje

Tomando no seu conjunto estes flashes da situação, conclui-se que o momento actual é rico de grandes esperanças, à mistura com inegáveis perigos. A situação de hoje, com todas as suas novas aberturas, reflecte a incoerência interior da natureza humana, que se abre sempre novamente para Deus e ao mesmo tempo Lhe procura fugir. Talvez neste momento as esperanças prevaleçam sobre os perigos, porque se derrubam tantas estruturas que pareciam opor-se com uma solidez inexpugnável à Fé, a qual demonstrou novamente a sua vitalidade. Mas não é esta a oportunidade de nos dedicarmos a ponderar, uns em relação aos outros, os vários factores em causa. Na última parte das nossas considerações preferimos colocar a seguinte questão: como é que se deve comportar um crente para responder aos sinais dos tempos e mostrar deste modo aos homens de hoje o caminho da libertação? Quero deixar três linhas de reflexão sobre este tema.

Acreditar é uma atitude razoável

A Fé não é uma espécie de resignação da inteligência, perante os limites do nosso conhecimento; não é uma cedência ao irracional, para escapar aos perigos de uma razão meramente instrumental. A Fé não é expressão de cansaço e de fuga, mas coragem de ser e movimento de abertura para a grandeza e amplidão da realidade. A Fé é um acto de afirmação; funda-se na força de um novo «sim», que se torna possível ao homem no contacto com Deus. Justamente nesta situação de ressentimento generalizado contra a racionalidade técnica, parece-me importante ressaltar a razoabilidade essencial da Fé. Segundo uma crítica da modernidade, já conhecida há tempos, não se lhe pode reprovar a confiança na razão enquanto tal, mas só o reducionismo do conceito de razão, que foi o que abriu as portas às ideologias irracionais. Todavia, o mistério, tal como o concebe a Fé, não é de facto o irracional, mas a extrema profundidade da razão divina, que nós não podemos penetrar em grau mais elevado pela debilidade dos nossos olhos. É, e permanece como afirmação fundamental da Fé a expressão com que João – retomando e aprofundando o relato da Criação do Antigo Testamento – inicia o seu Evangelho: no princípio era o Logos, a razão criadora, a força do conhecimento divino, que dá significado às coisas. Só a partir deste ponto se pode compreender correctamente o Mistério de Cristo, no qual a razão se mostra ao mesmo tempo como amor. A primeira palavra da Fé diz-se assim: tudo o que existe é, na sua origem, racional, porque provém da razão criadora de Deus.

Detenhamo-nos mais uma vez sobre a oposição fundamental entre materialismo e Fé. O credo do materialismo consiste em que no início está o irracional e que só as leis da casualidade deram origem, por combinações fortuitas, ao que é racional. A razão é, por isso, um subproduto do irracional; nas suas leis ela não é mais que um conjunto de combinações, sem conteúdo moral ou estético. Do mesmo modo, o Homem se torna um combinador do mundo, que ele projecta como lhe convém, segundo os critérios os estabelecidos por si. Contudo, o irracional permanece sempre como a verdadeira força originária.

Segundo a Fé, acontece exactamente o contrário: o Espírito é a origem criadora de todas as coisas e por isso todas elas levam em si o selo da racionalidade, que não me provém delas mesmas, e que as supera infinitamente, embora constitua a sua lei íntima. A razão criadora, que cria a racionalidade objectiva das coisas, a sua matemática escondida e a sua ordem íntima, é ao mesmo tempo razão moral, e esta é amor. O homem é chamado a reconhecer as pegadas desta razão e a desenvolver as coisas conforme à natureza delas. O seu senhorio é serviço e a liberdade é um vínculo à verdade íntima das coisas, e desta forma uma abertura de amor, que o torna semelhante a Deus.

A época moderna tem-se caracterizado por um curioso vaivém entre o racionalismo e a irracionalidade. Face a este conflito, parece-me importante delinear correctamente as posições alternativas. A disjuntiva fundamental, que o desenvolvimento da época moderna põe diante de nós, consiste precisamente na pergunta: na origem de todas as coisas está a irracionalidade? a falta de racionalidade será a verdadeira origem do mundo, ou este provém, pelo contrário, da Razão Criadora? Crer significa abraçar a segunda alternativa e, de facto, só essa é, no sentido mais profundo da palavra, «razoável» e digna do homem. Diante da crise da razão em que o mundo se encontra hoje, é preciso voltar a destacar esta característica essencial da Fé, que salva a razão, justamente quando a compreende em toda a sua amplidão e profundidade e a protege contra a restrição àquilo que se pode comprovar de modo experimental. O mistério, longe de ir contra a razão, salva e defende a racionalidade do ser e do homem.

Pensamento, vontade e sentimento

Voltemos agora ao próprio âmbito do conhecimento, do querer e do sentir. Com as reflexões desenvolvidas até aqui, já foi apontada uma decisão prévia fundamental. No contexto da ameaça radical colocada pelo Iluminismo à religião, Schleiermacher tentou salvá-la definindo-a como sentimento: «A sua essência não é pensamento nem moralidade, mas opinião e sentimento». «A praxis é arte, a especulação intelectual é ciência, a religião é sensibilidade e gosto pelo infinito». O século XIX seguiu em grande parte esta tendência e congeminou nesta base uma forma de reconciliar a religião e a ciência: a inteligência poderia dispor e mandar o que quisesse; e, por sua parte, a religião, que seria exclusivamente um sentimento, não interferiria com a razão e ficaria livre de se expressar na esfera do sentimento e teria aí o seu lugar. O perigo implícito numa paz interior deste tipo volta hoje a apresentar-se, embora não seja correcto chamar-lhe propriamente paz, porque é antes divisão do homem, que acaba por prejudicar tanto a razão como o sentimento.

Efectivamente, trata-se de uma rendição da inteligência, na medida em que ela só se considera válida no âmbito do funcional e não se considera capaz de conhecer a verdade do ser, a verdade sobre nós, sobre a Criação e sobre Deus. Este cepticismo, porém, domina largamente as concepções actuais. Como regra, as pessoas já não têm pretensões de conhecer a verdade no que é mais específico destas questões. Esta forma de falsa humildade degrada o homem; torna o nosso actuar cego e o nosso sentimento vazio. Até na Igreja Católica se aceita dificilmente que a Fé nos ponha diante dos olhos a verdade sobre Deus. Vai-se difundindo a impressão de que todas as religiões andam às apalpadelas no escuro e que as suas afirmações não são mais que símbolos de uma realidade fundamentalmente incognoscível. Desta forma, a religião torna-se novamente uma esfera de sentimentos mais elevados. Feitas equivalentes umas às outras, as religiões deveriam servir, pela força de arraste dos melhores sentimentos, para promover os ideais mais nobres da humanidade e ser instrumentos da construção da paz universal.

Ora, todos nós aspiramos a esta paz universal. Que o virar-se para Deus leve os homens a reconhecer-se como irmãos e irmãs e desse modo contribua para a paz, é um imperativo justificado. Mas uma religião que seja apenas um meio para atingir determinados programas não está a ser tomada a sério como religião, na medida em que só pode actuar no campo do sentimento. Em todos os erros há algumas verdades.

É verdade que a religião apela à paz; é verdade que o sentimento também é próprio da religião e que falham todas as reformas que a pretendem privar do húmus do sentimento. Contudo, todas estas verdades só conservam a sua força na sua justa inter-relação. Ora, esta inter-relação consiste no facto de que a Fé assume o sentimento e o resgata da indeterminação, conferindo-lhe o seu autêntico fundamento: o sentimento a respeito do infinito repousa na verdade de que o Deus infinito existe e dirige a sua palavra a nós, criaturas finitas.

A Fé não pode encontrar hoje o seu vigor quando é remetida, o mais possível, para a esfera do indeterminado; a Fé precisa de ser compreendida em toda a sua grandeza. Não são as reduções que salvam a Fé, pois só servem para oferecer uma Fé de segunda, a preço módico. Unicamente na sua plenitude é que a Fé adquire significado.

Precisamente pelo facto de que não sejamos nós a ter de salvar a Fé, mas ser a Fé a salvar-nos a nós.