domingo, janeiro 22, 2006

PORTUGAL

Ó Portugal, se fosses só três sílabas,
Linda vista para o mar,
Minho verde, Algarve de cal,
Jerico rapando o espinhaço da terra,
Surdo e miudinho,
Moinho a braços com um vento
Testarudo, mas embolado e, afinal, amigo,
Se fosses só o sal, o sol, o sul,
O ladino pardal,
O manso boi coloquial,
A rechinante sardinha,
A desancada varina,
O plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos,
A muda queixa amendoada
Duns olhos pestanítidos,
Se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos,
O ferrugento cão asmático das praias,
O grilo engaiolado, a grila no lábio,
O calendário na parede, o emblema na lapela,
Ó Portugal, se fosses só três sílabas
De plástico, que era mais barato!

Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos,
Rendeiras de Viana, toureiros da Golegã,
Não há ‘papo-de-anjo’ que seja o meu derriço,
Galo que cante a cores na minha prateleira,
Alvura arrendada para o meu devaneio,
Bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.

Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
Golpe até ao osso, fome sem entretém,
Perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
Rocim engraxado,
Feira cabisbaixa,
Meu remorso,
Meu remorso de todos nós...

Alexandre O’Neill (1965)

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